A advogada Cecília Nunes Barros Telles palestrou hoje, dia 1º de novembro, sobre o tema “Reflexos patrimoniais das famílias paralelas”, no Grupo de Estudos de Direito de Família, no IARGS, sendo recepcionada pela diretora Liane Bestetti.
Cecília observou, na sua exposição, que os principais reflexos patrimoniais advindos do reconhecimento jurídico da existência das famílias paralelas, a partir da jurisprudência do Tribunal de Justiça do RS e do Tribunal Federal da 4ª Região. Na sua fala, disse que a família é instituto jurídico e fato social, resultado da comunhão de vidas e da afetividade.
Anteriormente restrita apenas aos vínculos conjugais ou parentais, disse, seu conceito tornou-se elástico, ilustrando com a recente alteração do significado no Dicionário Houaiss, conceituando família também como “Núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária”.
Ante o princípio da pluralidade das entidades familiares, destacou a importância de três elementos para a caracterização da família constitucional: o afeto, a estabilidade e a ostensividade nas relações. “Embora tais requisitos venham a título exemplificativo, eles podem ser encontrados em diversos arranjos familiares, independentemente da existência de casamento ou mesmo simultaneamente a ele”, frisou, ressaltando que assim são as famílias paralelas ou simultâneas que, além dos impactos sentimentais e sociais que irradiam, afetam os envolvidos em suas questões patrimoniais.
A advogada explicou que as famílias paralelas são aquelas em que um dos componentes possui vínculos familiares de igual magnitude em dois ou mais arranjos, simultaneamente: “O elo existente concomitantemente a outro com características idênticas ou similares, composto por uma pessoa já casada ou em união estável, configura a simultaneidade ou paralelismo”, conforme se evidencia no Artigo 226 do CPC: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
De acordo com Cecília, tal realidade existe em número muito mais amplo, sendo fonte de opressão e acarretando prejuízos materiais eminentemente à mulher e sua prole nas relações heterossexuais, sendo que o vértice desta organização familiar é o homem, na sua esmagadora maioria.
“Quando ocorre a dissolução deste vínculo, sem o reconhecimento de seu status de família constitucional, seja por morte ou separação, a partilha de bens tem sido realizada como se fosse sociedade de fato”, acentuou, prevenindo que esta configuração familiar não recebe proteção jurídica adequada do Estado.
Na sua avaliação, é clara uma reprovação moral acerca da existência desse gênero de organizações familiares, justificada pela afronta ao princípio da monogamia: “A monogamia é regra de organização estatal para privilegiar a propriedade privada e garantir ao homem a certeza da paternidade da prole, com vistas a impedir a dissipação de patrimônio, instaurada a partir do triunfo da propriedade privada sobre o estado condominial primitivo”.
Advertiu que o reconhecimento jurídico da existência e a atribuição dos efeitos decorrentes das famílias paralelas acontecem ainda de forma muito tímida na jurisprudência brasileira. Informou que a jurisprudência majoritária da esfera federal não só entende pela possibilidade do reconhecimento desta organização familiar como atribui efeitos patrimoniais à sua existência, dividindo as pensões por morte entre companheiras concomitantes.
Ressaltou que o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu ser impossível, segundo o ordenamento jurídico pátrio, conferir proteção jurídica a uniões estáveis paralelas. Conforme declarou, o maior empecilho ao reconhecimento desse instituto não é a existência de matrimônio, mas a concomitância de outra relação afetiva fática duradoura (convivência de fato), justificando que, havendo separação de fato, nem mesmo o casamento constituiria impedimento à caracterização da união estável. No Tribunal Estadual do Rio Grande do Sul, expôs, a jurisprudência dominante não reconhece como entidade familiar a relação paralela.
No entanto, constatou, há precedentes destoantes desta jurisprudência, até então uníssona, em declarar que inviável reconhecimento de união paralela ao casamento no TJRS. Recentemente, foi julgada a apelação cível n.70066331992, na data de 17/12/201520, em cujo julgamento o relator Des. Luiz Felipe Brasil Santos, acompanhado pelos Des. Ricardo Moreira Lins Pastl e Dr. José Pedro de Oliveira Eckert, reconheceu a existência de duas uniões estáveis concomitantes, tomando os termos da sentença do juiz.
Ao se reconhecer juridicamente as uniões paralelas como entidade familiar, Cecília entende ser impossível afastar os efeitos patrimoniais advindos dessa configuração de vida. Algumas questões foram pontualmente analisadas por ela, como a divisão de pensão por morte do segurado, a obrigação alimentar entre aqueles que dissolveram a união, bem como a partilha de bens, o direito à sucessão e o direito real de habitação do companheiro.
De acordo com a advogada, a Justiça Federal da quarta região já vem reconhecendo a existência das famílias paralelas e, consequentemente, atribuindo efeitos patrimoniais sobre estas questões, determinando a divisão igualitária da pensão por morte daquele que possuía mais de uma companheira simultaneamente.
Para exemplificar, citou as palavras de Rodrigo da Cunha Pereira, Presidente do IBDFAM: “Foi o Direito Previdenciário que impulsionou o Direito de Família a evoluir o conceito de concubinato, hoje união estável, pois o Direito Previdenciário não carrega consigo um conteúdo moral como acontece com o Direito de Família”.
Em casos de união dúplice, referiu que a jurisprudência do Tribunal do RS tem entendido ser necessário dividir o patrimônio adquirido no período em que as uniões paralelas existiram em três partes.
Em sua pesquisa no que concerne a Direito das Sucessões, informou que não localizou julgados deferindo pedido de habilitação de companheira em sucessão daquele que mantinha uniões concomitantes. “Crê-se que isso deve-se ao fato da barreira imposta pelo não reconhecimento destes relacionamentos como entidades familiares”, atentou, sugerindo que em futuro próximo tais relações sairão da clandestinidade.
Em relação às indenizações por responsabilidade civil em decorrência de infração aos deveres familiares, verificou uma proposição de lei chamada Estatuto das Famílias, concebido pelo IBDFAM, em que é expressamente prevista a responsabilidade civil pelos danos materiais e morais causados ao núcleo familiar paralelo por aquele ente que o constituir na constância de união estável ou casamento.
Acautelou que a proposta legislativa busca reparar uma injustiça há muito perpetrada, que é o enriquecimento ilícito de uma das partes da família paralela em detrimento de outra: “Responsabilizando-se aquele que age de má-fé, desestimula-se a constituição de famílias paralelas não consensuais, justamente porque o patrimônio poderá ser atingido”.
Enfatizou que no Direito de Família Contemporâneo cada vez mais se defende que o Estado não deve interferir na forma como as pessoas decidem constituir suas famílias. “Independente do arranjo familiar, o Estado tem o dever de proteger e de assegurar aos seus integrantes o exercício de seus direitos fundamentais, que é o princípio da dignidade da pessoa humana, devendo ser fomentado e protegido para que embase a personalidade de cada componente deste grupo, impulsionando o progresso”, destacou.
Em contrapartida, disse, o Estado não deve se omitir, efetivando e garantindo direitos aos seus tutelados, mesmo diante da lacuna legislativa. “Trata-se de um grande desafio, pois, se de um lado estão dogmas e conceitos morais arraigados, de outro temos o avanço da sociedade e a mutação das relações, que impactam a legislação que não mais servem a estes arranjos. Devemos estar atentos à proposição de soluções para os diversos impactos, inclusive patrimoniais, decorrentes destas novas configurações familiares”, concluiu.